terça-feira, 12 de agosto de 2008

Contra a saudade (DA, 8-8-2004)

Numa casa verde que eu conheci via todos os dias o Atlântico. Essa casa verde não foi construída por mais um dos barões do império que povoaram boa parte da costa açoriana com casarões opulentos, símbolos duma grandeza hoje irremediavelmente perdida. Não. A casa verde não foi construída à custa da exploração dos camponeses açorianos que desde a descoberta das ilhas até ao fim do império construíram e reconstruíram inúmeras habitações destinadas a perpetuar a glória e magnificência dos senhores das terras açorianas.
A casa verde foi construída exactamente por um desses camponeses que, assim como os seus pais e avós, foi espoliado por essa classe inerte de proprietários que mais não fazia além de olhar os lindos e férteis campos açorianos apinhados de humildes trabalhadores que vendiam a dignidade, e por vezes a honra, em troca duma miserável subsistência, e que somente a pele branca os distinguia dos negros que pelo império fora roçavam as roças de café para fortuna dos ausentes latifundiários da metrópole.
Esta casa verde foi construída através da única maneira que um humilde camponês açoriano a poderia fazer erguer: imigrar para posteriormente regressar, trazendo consigo todo o dinheiro que lhe foi possível amealhar em troca de décadas de trabalho árduo, de mazelas físicas e mentais e, não menos importante, de… saudades da terra e da família distante.
Sem magnificência, mas com uma simplicidade encantadora a casa verde foi erguida, habitada e vivida por quem tanto a mereceu. Nela reatou-se um casamento e uma família tristemente separada pela crueldade da vida. A casa pertenceu e foi merecida por todos os que nela viveram, porque ora com o trabalho ora com a saudade todos contribuíram para que ela existisse. E existiu.
Foram certamente inúmeros os camponeses açorianos que ao longo de séculos trabalharam e trabalharam com um horário ditado pelo sol, sem direito a férias nem a fins-de-semana, ou a qualquer espécie de subsídio ou reforma. E, ainda mais grave, sem que em altura nenhuma das suas vidas pudessem também eles sonhar em erguer a sua casa que tanto podia ser verde como amarela, azul ou cor-de-rosa. O importante era que só a eles e aos seus pertencesse.
A opulência dos casarões dos senhores das terras açorianas e do restante império contrastou e existiu para fazer contrastar a realidade de quem manda e de quem só lhes resta obedecer, de quem explora e de quem é explorado, de quem viveu com abundância junto das suas famílias e de quem viveu miseravelmente junto das suas.
Apesar do mar que banha as ilhas ser o mesmo, as maneiras de olhá-lo não eram as mesmas. Para quem possuía a terra, ou seja a riqueza, o Atlântico limpo e cristalino significava o triunfo pessoal e familiar, foi por ele ou através dele que se fizeram fortunas, conversões a Cristo, comércio, guerra, tráfico de escravos e todo o tipo de explorações humanas devidamente recompensadas com umas boas propriedades com vista sobre o mar, e com o garante que a exploração dos que nela trabalhavam. Mas, o humilde camponês que olhava o mar, via o sonho de uma vida sem exploração onde pelo suor do seu trabalho pudesse livremente construir a sua casa verde.
Eu conheci uma casa verde que nasceu desse sonho. Nela havia um miradouro sobre o mar, onde com a satisfação e a sensação de sonho cumprido também o humilde camponês podia sentir-se um senhor das terras, mesmo que as suas terras não fossem mais do que um simples quintal com um miradouro no fundo. Mas era seu, e aquele miradouro valia tanto como a escritura, era a prova de que o sonho era possível. Nele podia ver todos os dias o mar que atravessou em busca de tornar realidade o sonho e regressou para concretizar esse sonho de erguer a sua casa verde.
A casa verde não é nenhum palacete, mas é imaculada porque não foi construída à custa da exploração de ninguém, mas sim por quem foi explorado por alguém, algo que nenhum palacete das costas açorianas construído até ao século XX se pode orgulhar. Aquilo que distingue a casa verde de um desses palacetes é o simples facto de que não estar suja de sangue alheio, apenas molhada pelo suor de uma vida de trabalho de um só homem.
Foram muitos os que sonharam, mas foram muitos menos os que realizaram o sonho. Foram muitos os que olharam o mar, mas foram muito menos os que o atravessaram e regressaram com o sonho na mala, depois de uma vida vivida contra a saudade.
Dedico estas linhas a todos os quantos sonharam e que pelo sonho viveram e que por ele morreram. Descansem em paz.

Por Colin Marques, publicado no Diário dos Açores em 8 de Agosto de 2004

1 comentário:

Anónimo disse...

Lembro-me quando escreveste este lindo texto.
Um beijo

Vos estis sal terra |

 Vos estis sal terra | "I Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porq...